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terça-feira, 27 de novembro de 2012

Democracia participativa e direitos sociais


Publicado em: 26/11/2012 23:28:00
Democracia participativa e direitos sociais
Por Ana Maria Costa

As recentes tensões às quais o projeto político universalista para a seguridade social e a saúde vem sendo submetido frente ao modelo adotado para o desenvolvimento econômico e social emolduram um novo e preocupante cenário para o setor.
A possibilidade do Estado retomar as bases constitucionais da universalidade das políticas para garantir direitos sociais envolve relativizar o peso que o capital e o mercado tem instalado no seu interior e, consequentemente, está relacionada às possibilidades e limites do fortalecimento de uma cidadania baseada na consciência e no exercício pleno de direitos sociais, incluído o caso particular do direito à saúde.     
O intenso debate sobre a saúde na sociedade, ocorrido nas ultimas décadas, e sua expressão significativa nos órgãos executivos, nos parlamentos e até nos tribunais foram insuficientes para incorporar a real importância da questão na vida e no cotidiano das pessoas – o que, por sua vez, confere a ampliação da força do mercado no setor.
A efetivação da saúde como direito universal envolve assumir  a omissão do Estado na regulação que não impõe regras necessárias ao descabido crescimento do setor privado. Nesse momento foram permitidas negociações que garantiram a presença de capital internacional no mercado da saúde, desobedecendo a propria Constituição Federal. Urge instituir as bases de uma regulação efetiva do setor público sobre o privado, mas uma regulação que seja pautada pelos legítimos interesses públicos.
O direito à saúde, para ser efetivado, envolve também solucionar a construção de um sistema de atenção à saúde abrangente em ofertas das distintas modalidades de serviços e com garantia de acesso a todos os seus níveis; confiável em qualidade, e que seja articulado a outras políticas intersetoriais,  adotadas para a intervenção nas situações relacionadas à determinação social da saúde. Este sistema deve ter custos compatíveis e orçamento adequado, vinculado e estável.
O atual quadro da elevada adesão da sociedade aos planos privados de saúde é preocupante e um expressivo indicador da importância, como valor social, que tem o Sistema Único de Saúde para a população. A reversão desta situação depende de bons serviços ofertados, mas depende também do revigoramento político do projeto constitucional no interior do Estado brasileiro.
Nas origens da formulação das mudanças contextualizadas na Reforma Sanitária, a saúde foi caracterizada como uma questão para a democracia, o que pode ser entendido tanto na sua dimensão de justiça e direito universal, como também na dimensão de conquista social e política – o que decorre da ação permanente da sociedade para garantir, no Estado, o compromisso para o atendimento de suas necessidades.
A institucionalização do processo de participação social em conselhos e conferências definida na legislação e praticada no setor da saúde teve como objetivo central garantir a presença do povo nas decisões sobre a saúde. As representações dos segmentos envolvidos – usuários, trabalhadores e gestores – atuariam com a legitimidade que deve caracterizar o representante delegado pelos representados, mantendo com eles um fluxo comunicacional permanente para garantir o atendimento das expectativas, desejos e necessidades da população, e não apenas de grupos específicos.
A participação social na saúde se instalou ao longo destes 25 anos de existência do SUS e hoje serve como fonte de inspiração para a instituição dos fóruns de participação social de outras políticas setoriais no Brasil. Todavia, a despeito de todas as conquistas e avanços, são muito os problemas identificados pelos diversos autores. Estudos sobre conferências e conselhos de saúde no Brasil mostram que os desafios são incontornáveis se não ocorrerem as mudanças desejáveis ao aperfeiçoamento da democracia participativa.
Entre estes desafios, talvez o maior deles seria o de colocar a política – ou seja, os interesses  públicos ou coletivos –  no centro do debate, da ação e das decisões e encaminhamentos das instâncias de controle e participação social. Nesta perspectiva, uma pauta permanente para os conselhos deveria ser a analise dos temas nacionais, da macro política e do desenvolvimento social com enfoque na inserção da saúde.
Na mesma ordem de importância, outro desafio seria o de reverter a atual prática do “veto” predominante  entre os Conselhos para instituir a prática da negociação entre os segmentos presentes, preservando os interesses públicos. Todos os segmentos presentes nos conselhos devem ser valorizados e seus papéis devem ser considerados e valorizados na consolidação e efetivação das demandas sociais às quais se dedicam. (COSTA et ALL,2007)
A expectativa inicial depositada sobre as práticas de participação social envolveu tanto a pressão política contínua e crescente sobre o Estado pela universalização do direito a saúde como também os aspectos da micropolítica dos territórios das comunidades, por meio da acumulação de capital social entendido, como nos ensina Putnam como uma associação entre capital social, comunidade cívica e desempenho institucional. A criação de um ciclo virtuoso pela presença de uma comunidade cívica como fator determinante para melhor desempenho institucional que, por sua vez, aumenta os laços entre a sociedade, ampliando a democracia e o chamado capital social. (PUTNAM; 1999:177 e 181).
Contudo, é imprescindível que todos os envolvidos compreendam que a participação está sujeita à responsabilidade como ator público. Ao mesmo tempo, há que ser claro na definição de suas atribuições, cujo papel não pode comprometer a atuação dos governantes, agentes públicos constituídos para esta responsabilidade. Isso não significa que a participação da sociedade civil deva sofrer qualquer forma de cerceamento ou constrangimento no campo das ideias e das inovações e desafios que esses atores encetam no debate público.
O certo é que os limites institucionais não podem alimentar os mitos sobre a ideia de participação da sociedade. Moroni (2005) destaca alguns desses mitos. O primeiro deles é que “a participação, por si só, muda a realidade”. Ou seja, não adianta que os sujeitos tenham direito a uma cadeira, se eles não conseguem com que suas demandas e proposições sejam ouvidas no espaço público. Isso, para o autor, é a despolitização da participação, é o participar somente por participar.
O segundo mito é “a sociedade não está preparada para participar, como protagonista, das políticas públicas”. De acordo com essa concepção, a diferença de conhecimento, o acesso à informação e o poder entre representantes da sociedade e os especialistas ou gestores leva à crença de que a sociedade só poderia exercer um papel secundário nesse processo. Isso explica o fato da predominância das opiniões e posições do gestor ou trabalhadores de saúde nos conselhos.  
O terceiro mito é “a sociedade não pode compartilhar da governabilidade”, baseado em uma concepção de representação tradicional no processo eleitoral que deve resultar na dominação da sociedade pelo partido vitorioso. Nessa acepção, a participação da sociedade deve se restringir ao voto. Aqui, não se considera a participação “ativa” dos cidadãos nas escolhas políticas e públicas.
O último mito que Moroni enumera é “a sociedade é vista como elemento que dificulta a tomada de decisão”. Nesse caso, parte-se de uma noção de que o processo de debate e a construção de caminhos alternativos causa prejuízo e demora o processo de decisão, o que não ocorre quando fica sob a responsabilidade exclusiva do gestor. ( MORONI,2005)
A desconstrução desses mitos e a busca de solução dos problemas existentes concernentes à participação que tem sido sobejamente debatidos e estudados podem delinear caminhos para que os espaços de controle social e participação popular sejam, de fato, espaços de democracia participativa.  
Diversos autores mostram que, na vigência do governo do Presidente Lula, houve um incentivo à presença e participação popular com predomínio da inserção da sociedade no aparelho do Estado para garantir as demandas sociais. A ambiguidade instalada nesse contexto de identidade e proximidade política entre o governo e a maioria dos movimentos sociais aumentou a “disciplina” e regulação destes, prevalecendo os interesses partidários em detrimento das demandas sociais.
As ameaças à democracia são concretas e procedem dos diversos espaços do Estado – não apenas das instituições governamentais, mas dos outros poderes da sociedade – e podem ser, muitas vezes, imperceptíveis, porque nem sempre são provenientes de campos ideológicos conservadores e se manifestam até mesmo em ambientes considerados democráticos. É necessário reconhecer e estabelecer permanentes mecanismos para salvaguardar e fortalecer a democracia.
O modelo de democratização no Brasil conta com instituições consolidadas, tais como o voto e o parlamento, reconhecidos como legítimos e necessários, mas também insuficientes. Conta também com as novas instituições e modalidades de participação que estão surgindo e que não se limitam às formas tradicionais da democracia representativa.
Essas instituições inovadoras, que são a base de um projeto maior de consolidação de mecanismos de democracia participativa, atuam sobre a gestão de políticas públicas. As instâncias de democracia direta e participativa, como a iniciativa popular legislativa, os orçamentos participativos, os conselhos de saúde, os conselhos gestores e os fóruns deliberativos, entre outras iniciativas autônomas de organização da sociedade, devem ser celebradas. Todas estas alternativas, juntas, poderão servir de base para impulsionar um processo de maior mobilização e politização da sociedade na ampliação de seus direitos sociais.
Referências
COSTA, A., BAHIA L., MODESTO, A. A. D. (2007). Health and Social Determinants in BRazil: A study on the influence of Public Participation on the Formulation of the Expanded Concept of Health and Liberating Practices. Available from: Http://www.who.int/social_determinants/resources/isa_public_participation_bra.pdf.
PUTNAM, Robert. (1999). Comunidade e Democracia: A experiência da Itália Moderna. Rio de Janeiro, FGV.
MORONI, J. A. (2005). O Direito à Participação no Governo Lula. In: Revista Saúde em Debate (CEBES). Rio de Janeiro, v.29. nº71. Set/dez.

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